terça-feira, 1 de abril de 2014

O 1º de abril

Um presidente deposto e outro conduzido ao poder por homens armados marcam o início da Revolução ‘Democrática’ de 1964. Entenda os eventos que levaram à instauração da ditadura civil-militar no Brasil

João Roberto Martins Filho
No dia 27 de março de 1964, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda (1914-1977), mandou a família para a casa de amigos e resolveu dormir no Palácio Guanabara. Apelidado de “O Corvo”, por seu nariz adunco e sua participação na crise que levou ao suicídio de Getulio em agosto de 1954, o conspirador via chegada a hora do acerto de contas com seus inimigos políticos. Em sua avaliação, a situação do país tinha atingido o ponto de não retorno. O sinal verde para o golpe abriu-se com a Revolta dos Marinheiros e o discurso radical do presidente João Goulart no Automóvel Clube, no dia 30 de março, para um público de sargentos e suboficiais.
A radicalização de Goulart dava ares de verdade à mensagem de que ele se rendia ao comunismo. No começo de março, com a adesão do sempre cauteloso general Castello Branco ao movimento, a relação de forças no seio das Forças Armadas começara a pender a favor do golpe. Mas ainda pairava no ar o fantasma de um confronto com o “dispositivo militar” do presidente, comandado pelo chefe da Casa Militar, general Assis Brasil. Chegou-se a uma situação na qual o que contava era a capacidade de cada lado de arregimentar legiões.
Respeitado no Exército, Castello Branco sabia que, sem o apoio da maioria dos oficiais, o movimento anti-Goulart fracassaria. No campo civil, as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” tinham feito seu papel, permitindo dizer que o povo brasileiro chamava as Forças Armadas para salvar o país do comunismo.
Na manhã de 31 de março, o general recebeu com irritação a notícia de que a ala mineira da rebelião resolvera precipitar os acontecimentos. Carlos Luiz Guedes, comandante da Infantaria Divisionária 4, e Olympio Mourão Filho, chefe da 4ª Divisão de Infantaria, de Juiz de Fora, agiam em acordo com o governador Magalhães Pinto. Por volta das 7 horas da manhã do dia 31 de março, o general Castello Branco ligou para Magalhães pedindo que convencesse Mourão a não deslocar seus homens para o Rio de Janeiro. Não obteve sucesso. Batizada de “Coluna Tiradentes”, a tropa saiu de Juiz de Fora à tarde, sob o comando do general Antonio Carlos Muricy, atingindo a divisa com o Rio de Janeiro no final do dia.
Na ex-capital do país, o chefe da Casa Militar do governador, coronel Fontenelle, mandou bloquear as ruas de acesso ao palácio com caminhões de lixo, temendo um ataque de tropas legalistas. Na Praia de Botafogo, vista como alvo provável de um desembarque de fuzileiros navais comandados pelo almirante Aragão, inimigo público e visceral de Lacerda e partidário de Goulart, Fontenelle mandou colocar tonéis de petróleo vazios.
Atraída pelos rumores, uma pequena multidão se concentrou nos arredores do Palácio Guanabara. Sarcasticamente, o próprio Lacerda descreveu anos depois a movimentação: “Então apareciam no Guanabara uns velhinhos, uns almirantes reformados, uns generais reformadíssimos, que saíam de casa com a sua pistolinha! Mas apareceu também uma rapaziada enorme, gente para todo lado, gente que ficava nas esquinas atrás de colunas”.
Surgiram boatos de que o Corpo de Fuzileiros Navais estaria se deslocando da Ilha do Governador para atacar Lacerda. As linhas telefônicas do Palácio foram cortadas, com exceção de uma, graças à qual Lacerda conseguiu se comunicar com o governador Ademar de Barros, em São Paulo, e com a UnitedPress, no exterior. O governador de Pernambuco, Miguel Arraes, pronunciou-se em defesa do regime constitucional. No Paraná, seu colega Nei Braga anunciou apoio ao golpe.
No histórico prédio do Ministério da Guerra, no Rio, em seu gabinete da Chefia do Estado-Maior do Exército, o general Castello Branco acompanhava o desenrolar dos fatos. Caberia a ele neutralizar qualquer movimento de tropas a partir do Rio de Janeiro ou de Petrópolis para enfrentar a coluna de Mourão. Em telefonema a Lacerda, Castello procurou explicar que a questão agora era militar: São Paulo, o Nordeste e o Rio Grande do Sul precisavam se definir. Feito isso, as tropas paulistas e mineiras marchariam em diversas colunas para o Rio de Janeiro. Em nenhum outro lugar os acontecimentos foram tão decisivos.
Em São Paulo, às 22 horas, Ademar de Barros declarou apoio ao golpe. Uma hora depois, o general Amaury Kruel, chefe do II Exército, com sede na capital paulista, aderiu ao movimento, após tentar convencer Goulart a demitir ministros “comunistas”. Às 2 horas da manhã, Ademar foi de novo à televisão anunciar que as tropas do general Kruel seguiam pela Via Dutra rumo ao Rio de Janeiro, para se reunir à “Coluna Tiradentes”. Entre os paisanos, os governadores de Goiás, Mato Grosso e dos estados do Sul tinham declarado apoio ao golpe.
Como disse depois o general Cordeiro de Farias, “o Exército dormiu janguista no dia 31 e acordou revolucionário no dia 1º”. A coluna de Minas Gerais defrontou-se, na altura do Rio Paraibuna, com o batalhão de Petrópolis, chefiado por um tenente-coronel de nome Kerensky. Os tenentes de Mourão conversaram diretamente com seus camaradas vindos do estado da Guanabara, conseguindo sua adesão. Às 3h30, o marechal Odílio Denys, ex-ministro da Guerra, visitou a coluna e logrou, por telefone, convencer o coronel comandante do Regimento Sampaio a alinhar-se às legiões em revolta.
Gradualmente, a hipótese de confronto militar se extinguia. Às 7 horas, Mourão e seus comandados puseram-se de novo em movimento. Alguns oficiais da Força Aérea levantaram voo de Pirassununga (SP) com o objetivo de atacar as colunas golpistas, mas não receberam ordens para disparar. Também na Força Aérea, o esforço miúdo de doutrinação do pré-golpe mostrava resultados. Às 12 horas, o Regimento de Artilharia de Costa, ao lado do Forte de Copacabana, foi neutralizado pelo impulsivo general Montagna, que ultrapassou a assustada sentinela dando-lhe um empurrão. Do Recife, o general Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército, anunciou seu apoio. Ações isoladas dos fuzileiros navais do almirante Aragão não conseguiram virar o jogo militar. O “almirante vermelho” acabou preso.
Jango resolveu deixar o Rio de Janeiro pouco antes das 13 horas, embarcando para Brasília. O ministro da Justiça, Abelardo Jurema, foi detido no Aeroporto Santos Dumont e levado para a Escola de Comando e Estado Maior do Exército, na Urca, um dos centros nervosos do movimento. No Recife, às 20 horas, tropas do Exército prenderam o governador Miguel Arraes, conduzido a um quartel, de onde seria transferido, no dia 2, para Fernando de Noronha.
Reunidos na Cinelândia, manifestantes pró-Goulart tentaram invadir o Clube Militar, mas foram rechaçados a tiros. Instigados ao vivo pelo apresentador de rádio e de TV Flávio Cavalcanti, bandos anticomunistas atearam fogo à sede da União Nacional dos Estudantes, a UNE, na Praia do Flamengo. Em toda a cidade, tropas policiais e militares começaram a prender líderes políticos ligados a Goulart. A Faculdade Nacional de Filosofia foi atacada a tiros de metralhadora. No Centro da cidade, uma reunião de emergência convocada pelo Comando Geral dos Trabalhadores foi dissolvida, com prisões de alguns líderes importantes. O jornal Última Hora, de Samuel Wainer, foi empastelado. Às 17 horas, oficiais da Marinha conseguiram tomar o prédio de seu ministério. Houve violentos conflitos entre manifestantes e soldados nas ruas da ex-capital, com mortos e feridos.
Às 23h30, Goulart voou para Porto Alegre, onde esperava resistir com apoio do Exército. De madrugada, com o Congresso Nacional cercado por tropas militares e sob protesto de um grupo de parlamentares, seu presidente, o senador Auro de Moura Andrade, declarou a vacância da Presidência, embora o presidente ainda estivesse em território nacional. Às 11h45 do dia 2 de abril, ele fugiu para São Borja, dali rumando para uma fazenda no Uruguai.
Por alguns dias, para dar uma aparência de legalidade ao golpe, a Presidência da República passou a ser ocupada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. Conduzido ao Planalto “em um carro literalmente coberto por homens armados”, como relatou o terceiro secretário da Embaixada Americana em Brasília, Robert Bentley, Mazzilli tomou o poder na calada da noite. Ainda no dia 2, os Estados Unidos reconheceram o novo regime. Começava o período da oficialmente chamada Revolução Democrática de 1964.

João Roberto Martins Filho é professor da Universidade Federal de São Carlos e organizador de O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas (Edufscar, 2006).

Muito além das quatro linhas

Um dos maiores fenômenos socioculturais do país, o futebol pode ser matéria de ensino, associado a diferentes momentos históricos

André Mendes Capraro
Se a compreensão da vida social é o objeto por excelência da educação, o futebol não pode ficar fora das salas de aula. Nas escolas, em geral, as rápidas menções à história do futebol ocorrem nas aulas de educação física. Aos alunos repassam-se fatos e nomes, como o de Charles Miller (1874-1953) e sua chegada ao Brasil em 1894, após encerrar os estudos na Grã-Bretanha. Questionado sobre o que aprendeu na Europa, o novo funcionário da Railway Company (companhia inglesa de ferrovias) em São Paulo, teria  respondido “Aprendi isto!” – lançando duas bolas de futebol em direção ao pai.
A introdução do football no Brasil ocorreu entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX. Segundo a versão mais conhecida, acredita-se que tenha sido, a princípio, uma atividade elitizada, praticada principalmente por jovens imigrantes e estudantes de famílias de prestígio social, mantendo alguns preceitos ingleses, como a fidalguia, o fair-playe o cavalheirismo. Durante o período chamado deBelle Époque (1880-1914), no qual as principais referências para a elite brasileira eram a França e a Inglaterra, o futebol ascendeu como um modismo: símbolo de jovialidade, status social elevado e, sobretudo, civilidade.
Mas estava longe de ser uma unanimidade. As pessoas mais velhas não viam com bons olhos aqueles jovens dedicando parte considerável do dia aos exercícios físicos, expostos ao sol, bronzeados e com os músculos desenvolvidos à mostra. O esforço físico ainda era associado ao trabalho braçal, considerado degradante desde os tempos da escravidão. Não eram raras as cartas publicadas nos jornais reclamando da dedicação aos esportes em detrimento dos estudos. E logo o futebol tornou-se motivo de debate entre expoentes da literatura nacional. Lima Barreto (1881-1922), com a contumaz ironia, sugeriu em uma crônica a fundação de uma liga contra o futebol. Seu argumento era de que “os jornais não falavam em outra coisa”: às segundas-feiras o noticiário policial traz “notícias de conflitos e rolos nos campos de tão estúpido jogo”, mas nas seções especiais os jornais “procuravam epítetos e entoavam toscas odes aos vencedores dos desafios”.
 Já Coelho Netto (1864-1934), o escritor mais lido na época, era sócio do Fluminense, clube no qual atuavam os seus filhos. Motivos pessoais não lhe faltavam, então, para se tornar um defensor fervoroso das qualidades físicas e morais do esporte bretão. A querela entre ambos durou anos. Machado de Assis (1839-1908) olhava o esporte com certo desdém, enquanto João do Rio (1881-1921) e Olavo Bilac (1865-1918) eram simpatizantes e frequentadores dos estádios. Hoje consagrado “príncipe dos poetas brasileiros”, Bilac considerava o futebol uma forma da manutenção higiênica do corpo. Em algumas ocasiões – como em um festival esportivo ocorrido na cidade de Curitiba, em 1916 – chegou a proferir discursos enaltecendo os valores do futebol e sua importância para o futuro pátrio.
Pesquisas recentes vêm contestando a versão de que era um esporte exclusivamente elitizado em seus primeiros anos. Já nas últimas décadas do século XIX, sabe-se que o futebol era praticado nas praias por marinheiros e estivadores, nas escolas católicas e por populares nas ruas, praças e outros locais improvisados. Com surpreendente rapidez, diferentes meios sociais se apropriaram da prática.
Diante disso, cabe perguntar aos alunos, seja no ensino médio, seja no universitário: quais os limites impostos pelas fontes? Quem produziu essas informações? A imagem de uma prática restrita a jovens abastados era produzida pelos clubes tradicionais e em notas de colunismo social nos jornais. A historiografia precisou ir atrás de outros tipos de fonte para ampliar o debate sobre o impacto e o alcance social do futebol – como boletins de ocorrência policial (era proibido praticá-lo nas ruas e em outros espaços públicos), textos literários (sobretudo as crônicas), planos de ensino (documento em que o professor apresenta o conteúdo do seu ano letivo) e fotografias (encontradas em acervos de instituições de ensino).
O futebol também pode ser visto como um exemplo das influências dos imigrantes europeus no plano sociocultural brasileiro. Alemães, italianos, portugueses e espanhóis fundaram vários clubes esportivos pelo país. Logo após a abolição da escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889), intensificou-se o projeto político para atrair imigrantes, e muitos europeus já tinham a prática dos esportes como um hábito. A fundação dessas agremiações visava inclusive à preservação da própria cultura, expressa já na escolha dos nomes: Sport Club Germânia, Clube de Regatas Vasco da Gama, Palestra Itália (atual Palmeiras), Associação Portuguesa de Desportos, Società Sportiva Palestra Itália (atual Cruzeiro), Galícia Esporte Clube (de Salvador), Clube Atlético Juventus (homônimo paulista do clube italiano).
Ao longo do século XX, aumentou o contraste social entre os grupos de imigrantes. Alguns indivíduos de colônias populosas prosperaram, entre eles portugueses, no Rio de Janeiro e São Paulo; alemães, na região Sul; e italianos, também na região Sul e em São Paulo. Logo, por meio de taxas de inscrição, mensalidades e outros critérios seletivos, os clubes étnicos passaram a acolher sócios mais abastados, e que eram aceitos nas principais ligas e federações esportivas, enquanto outros de mesma origem, porém bem mais modestos, participavam das competições de várzea. Um exemplo dessa diferença é a Associação Portuguesa de Desportos, que sempre foi respeitada e aceita pela principal liga paulista desde 1920, enquanto a Associação Atlética Portuguesa Santista, fundada na mesma época, jogava nas ligas menos prestigiosas.
A história social de alguns clubes tradicionais também pode ser utilizada pelo professor para discutir como foram – e ainda são – criados certos estereótipos em relação aos próprios clubes e aos seus torcedores, forjando identidades que perduram até hoje. A história social ajuda a explicar, por exemplo, por que o São Paulo é considerado um clube das elites, enquanto o Corinthians é o do “povão” e o Palmeiras é o da colônia italiana. No Rio de Janeiro, o Vasco é o clube da comunidade portuguesa, o Flamengo é o das “massas” e o Fluminense, o das classes altas. Casos parecidos se repetem em cada estado do país.
Em diferentes perspectivas, o futebol caminha a par com importantes períodos históricos do século XX. As conquistas trabalhistas consolidadas na década de 1930, por exemplo, coincidiram com a popularização do esporte entre os trabalhadores urbanos e com a regulamentação da profissão de atleta de futebol. Durante a ditadura civil-militar, nos anos 1960 e 1970, a seleção brasileira foi utilizada como símbolo de nacionalismo, e o futebol protagonizou conchavos e casos de corrupção, tanto nos clubes quanto nas entidades regulamentadoras. A partir da década de 1990, o fenômeno da globalização refletiu-se nas crescentes transferências e circulação de atletas brasileiros. E a crise econômica atual na Europa ajuda a explicar o retorno de vários craques aos times nacionais.
Nas aulas de história, o tema futebol pode ser usado como experiência prática no manuseio de fontes. Poucas são as temáticas com tamanha diversidade: obras literárias, livros de memórias, filmes, documentários, notícias em jornais e revistas (especializados ou não), documentos de clubes e federações, legislação esportiva, boletins de ocorrência policial, obras de arte, acervo material (são dezenas de museus espalhados pelo mundo), depoimentos orais de atletas, dirigentes, torcedores em diversos sites, como o Youtube e nas comunidades virtuais agrupadas em torno de um clube, de uma seleção ou de um atleta.
O futebol favorece também trabalhos multidisciplinares. A literatura futebolística é rica de conteúdo e diversa em espaços, períodos e gêneros. Exemplos: as crônicas de Nelson Rodrigues (1912-1980) ou Luis Fernando Verissimo, os contos de Lima Barreto, as poesias de Armando Nogueira (1927-2010), as biografias de Ruy Castro ou as memórias de Nelson Motta.
Cabe ao professor despertar em seus alunos o olhar atento e crítico para essa manifestação tão brasileira. A recompensa virá rapidamente – afinal, trata-se do assunto mais debatido no país.