terça-feira, 1 de abril de 2014

Muito além das quatro linhas

Um dos maiores fenômenos socioculturais do país, o futebol pode ser matéria de ensino, associado a diferentes momentos históricos

André Mendes Capraro
Se a compreensão da vida social é o objeto por excelência da educação, o futebol não pode ficar fora das salas de aula. Nas escolas, em geral, as rápidas menções à história do futebol ocorrem nas aulas de educação física. Aos alunos repassam-se fatos e nomes, como o de Charles Miller (1874-1953) e sua chegada ao Brasil em 1894, após encerrar os estudos na Grã-Bretanha. Questionado sobre o que aprendeu na Europa, o novo funcionário da Railway Company (companhia inglesa de ferrovias) em São Paulo, teria  respondido “Aprendi isto!” – lançando duas bolas de futebol em direção ao pai.
A introdução do football no Brasil ocorreu entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX. Segundo a versão mais conhecida, acredita-se que tenha sido, a princípio, uma atividade elitizada, praticada principalmente por jovens imigrantes e estudantes de famílias de prestígio social, mantendo alguns preceitos ingleses, como a fidalguia, o fair-playe o cavalheirismo. Durante o período chamado deBelle Époque (1880-1914), no qual as principais referências para a elite brasileira eram a França e a Inglaterra, o futebol ascendeu como um modismo: símbolo de jovialidade, status social elevado e, sobretudo, civilidade.
Mas estava longe de ser uma unanimidade. As pessoas mais velhas não viam com bons olhos aqueles jovens dedicando parte considerável do dia aos exercícios físicos, expostos ao sol, bronzeados e com os músculos desenvolvidos à mostra. O esforço físico ainda era associado ao trabalho braçal, considerado degradante desde os tempos da escravidão. Não eram raras as cartas publicadas nos jornais reclamando da dedicação aos esportes em detrimento dos estudos. E logo o futebol tornou-se motivo de debate entre expoentes da literatura nacional. Lima Barreto (1881-1922), com a contumaz ironia, sugeriu em uma crônica a fundação de uma liga contra o futebol. Seu argumento era de que “os jornais não falavam em outra coisa”: às segundas-feiras o noticiário policial traz “notícias de conflitos e rolos nos campos de tão estúpido jogo”, mas nas seções especiais os jornais “procuravam epítetos e entoavam toscas odes aos vencedores dos desafios”.
 Já Coelho Netto (1864-1934), o escritor mais lido na época, era sócio do Fluminense, clube no qual atuavam os seus filhos. Motivos pessoais não lhe faltavam, então, para se tornar um defensor fervoroso das qualidades físicas e morais do esporte bretão. A querela entre ambos durou anos. Machado de Assis (1839-1908) olhava o esporte com certo desdém, enquanto João do Rio (1881-1921) e Olavo Bilac (1865-1918) eram simpatizantes e frequentadores dos estádios. Hoje consagrado “príncipe dos poetas brasileiros”, Bilac considerava o futebol uma forma da manutenção higiênica do corpo. Em algumas ocasiões – como em um festival esportivo ocorrido na cidade de Curitiba, em 1916 – chegou a proferir discursos enaltecendo os valores do futebol e sua importância para o futuro pátrio.
Pesquisas recentes vêm contestando a versão de que era um esporte exclusivamente elitizado em seus primeiros anos. Já nas últimas décadas do século XIX, sabe-se que o futebol era praticado nas praias por marinheiros e estivadores, nas escolas católicas e por populares nas ruas, praças e outros locais improvisados. Com surpreendente rapidez, diferentes meios sociais se apropriaram da prática.
Diante disso, cabe perguntar aos alunos, seja no ensino médio, seja no universitário: quais os limites impostos pelas fontes? Quem produziu essas informações? A imagem de uma prática restrita a jovens abastados era produzida pelos clubes tradicionais e em notas de colunismo social nos jornais. A historiografia precisou ir atrás de outros tipos de fonte para ampliar o debate sobre o impacto e o alcance social do futebol – como boletins de ocorrência policial (era proibido praticá-lo nas ruas e em outros espaços públicos), textos literários (sobretudo as crônicas), planos de ensino (documento em que o professor apresenta o conteúdo do seu ano letivo) e fotografias (encontradas em acervos de instituições de ensino).
O futebol também pode ser visto como um exemplo das influências dos imigrantes europeus no plano sociocultural brasileiro. Alemães, italianos, portugueses e espanhóis fundaram vários clubes esportivos pelo país. Logo após a abolição da escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889), intensificou-se o projeto político para atrair imigrantes, e muitos europeus já tinham a prática dos esportes como um hábito. A fundação dessas agremiações visava inclusive à preservação da própria cultura, expressa já na escolha dos nomes: Sport Club Germânia, Clube de Regatas Vasco da Gama, Palestra Itália (atual Palmeiras), Associação Portuguesa de Desportos, Società Sportiva Palestra Itália (atual Cruzeiro), Galícia Esporte Clube (de Salvador), Clube Atlético Juventus (homônimo paulista do clube italiano).
Ao longo do século XX, aumentou o contraste social entre os grupos de imigrantes. Alguns indivíduos de colônias populosas prosperaram, entre eles portugueses, no Rio de Janeiro e São Paulo; alemães, na região Sul; e italianos, também na região Sul e em São Paulo. Logo, por meio de taxas de inscrição, mensalidades e outros critérios seletivos, os clubes étnicos passaram a acolher sócios mais abastados, e que eram aceitos nas principais ligas e federações esportivas, enquanto outros de mesma origem, porém bem mais modestos, participavam das competições de várzea. Um exemplo dessa diferença é a Associação Portuguesa de Desportos, que sempre foi respeitada e aceita pela principal liga paulista desde 1920, enquanto a Associação Atlética Portuguesa Santista, fundada na mesma época, jogava nas ligas menos prestigiosas.
A história social de alguns clubes tradicionais também pode ser utilizada pelo professor para discutir como foram – e ainda são – criados certos estereótipos em relação aos próprios clubes e aos seus torcedores, forjando identidades que perduram até hoje. A história social ajuda a explicar, por exemplo, por que o São Paulo é considerado um clube das elites, enquanto o Corinthians é o do “povão” e o Palmeiras é o da colônia italiana. No Rio de Janeiro, o Vasco é o clube da comunidade portuguesa, o Flamengo é o das “massas” e o Fluminense, o das classes altas. Casos parecidos se repetem em cada estado do país.
Em diferentes perspectivas, o futebol caminha a par com importantes períodos históricos do século XX. As conquistas trabalhistas consolidadas na década de 1930, por exemplo, coincidiram com a popularização do esporte entre os trabalhadores urbanos e com a regulamentação da profissão de atleta de futebol. Durante a ditadura civil-militar, nos anos 1960 e 1970, a seleção brasileira foi utilizada como símbolo de nacionalismo, e o futebol protagonizou conchavos e casos de corrupção, tanto nos clubes quanto nas entidades regulamentadoras. A partir da década de 1990, o fenômeno da globalização refletiu-se nas crescentes transferências e circulação de atletas brasileiros. E a crise econômica atual na Europa ajuda a explicar o retorno de vários craques aos times nacionais.
Nas aulas de história, o tema futebol pode ser usado como experiência prática no manuseio de fontes. Poucas são as temáticas com tamanha diversidade: obras literárias, livros de memórias, filmes, documentários, notícias em jornais e revistas (especializados ou não), documentos de clubes e federações, legislação esportiva, boletins de ocorrência policial, obras de arte, acervo material (são dezenas de museus espalhados pelo mundo), depoimentos orais de atletas, dirigentes, torcedores em diversos sites, como o Youtube e nas comunidades virtuais agrupadas em torno de um clube, de uma seleção ou de um atleta.
O futebol favorece também trabalhos multidisciplinares. A literatura futebolística é rica de conteúdo e diversa em espaços, períodos e gêneros. Exemplos: as crônicas de Nelson Rodrigues (1912-1980) ou Luis Fernando Verissimo, os contos de Lima Barreto, as poesias de Armando Nogueira (1927-2010), as biografias de Ruy Castro ou as memórias de Nelson Motta.
Cabe ao professor despertar em seus alunos o olhar atento e crítico para essa manifestação tão brasileira. A recompensa virá rapidamente – afinal, trata-se do assunto mais debatido no país.


André Mendes Capraro é professor da Universidade Federal do Paraná e autor de Histórias de Matches e Intrigas da Sociedade – a crônica literária e o esporte futebol (Annablume, 2013).

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